O INFERNO SOCIAL
Por admin
Atualizado em 5 de novembro de 2025
O mundo civilizado é uma grande assembleia de aparências. Cada homem, em sua maneira de estar, ostenta virtudes que raramente lhe pertencem. Há mais encenação nas palavras do que sinceridade nas almas. A honra, que outrora se assentava sobre o caráter, agora repousa sobre o juízo público — e a virtude, cansada de ser sentimento, tornou-se ornamento de reputação.
O bem, quando praticado em silêncio, perdeu valor de moeda. É preciso que se veja, que se comente, que se admire. A caridade, antes impulso do coração, passou a ser exercício de prestígio. Doa-se mais por vaidade do que por piedade, e ajuda-se mais para ser lembrado do que para aliviar a dor do outro. Assim, a bondade converteu-se em espetáculo, e o aplauso é o seu verdadeiro sacramento.
O pecado, neste século de aparências, já não consiste em ofender a moral, mas em contrariar a hipocrisia. A falta não está em fazer o mal, mas em deixar que o mal seja notado. As transgressões que se calam são facilmente absolvidas; as que se revelam, não se perdoam. O inferno, por conseguinte, é menos povoado por criminosos do que por sinceros.
O homem moderno confunde virtude com publicidade. Proclama a própria humildade, anuncia a própria fé, e se ufana da própria compaixão. Não há gesto santo que não aspire a ser visto, nem oração que não espere eco. O altar tornou-se um espelho, e cada fiel busca a imagem de si mesmo refletida entre as chamas da devoção.
A mentira é hoje uma arte social. Aprende-se a mentir com distinção, a disfarçar com doçura, a ofender com delicadeza. E, no entanto, todos se julgam honestos — pois a verdade, quando elegante, parece dispensável. O fingimento mantém a ordem das coisas: a verdade, quando irrompe, causa desordem. Por isso, o mundo prefere o disfarce bem-educado à sinceridade rude.
A inveja é o vínculo secreto das relações humanas. Une mais do que o amor, porque é constante. O amor sacia; a inveja persevera. Há quem deseje o bem do próximo, contanto que o bem não brilhe mais que o seu. A inveja veste-se de zelo, fala em tom de conselho, e se esconde sob o disfarce da admiração. É a serpente que sorri.
O poder, por sua vez, continua o mais sagrado dos vícios. É a religião dos que não acreditam, e o altar dos que não têm fé. Cada governante é um sacerdote do próprio interesse, e cada povo, uma congregação de esperanças vãs. Nenhum poder é duradouro, mas todos se comportam como eternos. E quanto maior a autoridade, mais refinada a hipocrisia que a sustenta.
A moral pública é uma fábula que os homens contam para se esquecerem de si mesmos. Proíbe o que todos praticam, condena o que todos desejam, e exalta o que ninguém cumpre. É um teatro sem autoria: cada um representa um papel que despreza no outro. O vício, quando secreto, é tolerado; a virtude, quando sincera, é perigosa.
O culto à aparência invadiu também o espírito. Não se crê em Deus: acredita-se na crença. A oração tornou-se argumento, o perdão virou moeda. O homem fala do céu como quem descreve uma propriedade — e cita as Escrituras como quem mostra um brasão. A fé perdeu o mistério, mas ganhou utilidade. É o seguro moral de quem teme a queda e não confia no arrependimento.
As relações humanas, outrora fundadas no afeto, tornaram-se mercados de conveniência. A amizade é uma troca de favores, o amor um contrato de vaidades. Ninguém ouve o outro: escuta-se apenas a própria imagem refletida no olhar alheio. A sinceridade é um luxo de almas solitárias.
No convívio, reina a doçura calculada. Os que sorriem demais desejam algo; os que calam demais, planejam. A falsidade é o cimento da convivência, sem ela, o mundo desabaria em guerras de franqueza. A mentira é o preço da harmonia social, e cada palavra amável tem o valor de uma transação.
A cidade moderna, com seus templos e seus palácios, é o mais eficiente dos infernos. Tudo ali reluz, mas nada ilumina. Cada rua esconde uma intenção, cada rosto carrega uma farsa. Reza-se alto para abafar o ruído da culpa. O pecado é antigo, mas a dissimulação é recente e, por isso, mais eficaz.
O inferno social não é feito de fogo, mas de decência. Arde em silêncio, sob o verniz da moral, alimentado pelo desejo de ser respeitado. Os demônios são polidos, as almas, bem vestidas. Ninguém grita, ninguém confessa. A condenação é discreta e diária, e cada um a cumpre com um sorriso.
E quando, por acaso, o espelho se parte e a imagem se desfaz, resta apenas o que sempre houve: o vazio. Um vazio honesto, mas inconveniente. Pois a sociedade, essa grande paróquia da vaidade, não perdoa quem ousa ser verdadeiro.
“A hipocrisia é a arte de parecer virtuoso sem o peso da virtude, um talento que o inferno admira e o céu tolera.”
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